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Pesquisadores de universidades brasileiras,
dos EUA e Canadá descobrem um réptil do
período Cretáceo e lançam novas perguntas
sobre o registro fóssil da América do Sul

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Desde 2012, os pesquisadores do Laboratório de Paleontologia e Macroevolução da UFMG vêm percorrendo centenas de quilômetros na região norte de Minas Gerais à procura de fósseis.

Em um dos trabalhos de campo no município de João Pinheiro (noroeste do estado), em 2017, foi encontrado um minúsculo dente de tubarão ainda grudado na rocha matriz, datada do início do Período Cretáceo (mais ou menos 135 milhões de anos atrás).

Além de menor, o dente era diferente dos materiais de outros peixes cartilaginosos já conhecidos para a localidade. Para estudá-lo, era necessário retirá-lo da rocha. Isso foi feito mergulhando a amostra em uma solução de água oxigenada a 30%. Com isso, a rocha foi “pulverizada” e o fóssil liberado sem qualquer dano. Aplicando esse método a dezenas de amostras, foi descoberta uma grande variedade de pequenos restos de tubarões, que podem pertencer a diferentes espécies.

Afloramento fossilífero no norte de Minas

Durante a triagem de um fragmento de rocha pulverizada, em vez de escamas de peixes cartilaginosos, foi coletado um minúsculo osso com dentes, ainda com bastante sedimento aderido à superfície. Naquele momento, parecia um pedaço de crânio de algum peixe ósseo, mas não havia planos de estudá-lo imediatamente.

Ao continuar o trabalho de triagem, foram encontradas falanges e um fragmento de osso longo. Logo depois, vértebras, uma cintura pélvica quebrada e um fragmento de osso maxilar. O “peixe” se tratava, na verdade, de um pequeno lagarto.

Após um detalhado estudo anatômico e comparações com diversas espécies fósseis e recentes de lagartos, os pesquisadores concluíram que o material representa uma nova espécie, que foi nomeada Neokotus sanfranciscanus. O nome, que significa “o novo do São Francisco”, surgiu em referência às rochas da Bacia Sanfranciscana, nas quais os restos fósseis atribuídos à espécie foram encontrados.

O lagarto era de pequeno porte, com aproximadamente 10 cm de comprimento. A dentição ficou bem preservada e revela o padrão morfológico pleurodonte – os dentes se inserem no crânio pelo lado "de dentro" dos ossos maxilares e da mandíbula. Com exceção dos camaleões e seu parentes mais próximos, esse padrão pleurodonte é visto na grande maioria dos lagartos.

Os dentes também eram ligeiramente recurvados para dentro da boca e reforçados na base, sendo provavelmente utilizados na captura de insetos. Uma particularidade interessante é a presença de garras com bases achatadas, uma característica nunca vista em outro réptil. Os estudos prosseguem para entender o significado funcional dessa estrutura.

Reconstituição de Neokotus sanfranciscanus, com um carcarodontossaurídeo ao fundo. Arte de Jorge Blanco.

Falanges e fragmentos de costela do novo lagarto

A nova espécie provavelmente vivia às margens de um lago de baixa salinidade, no entorno do qual predominava um clima seco. A vegetação era composta por coníferas e angiospermas. A fauna terrestre é pouco conhecida, mas há registro de dinossauro carnívoro na região. Nas águas do lago, havia algas, invertebrados (crustáceos, por exemplo), peixes ósseos, celacantos, além das espécies de tubarões.

Um aspecto importante do achado é que, até então, os lagartos mais antigos do Brasil e da América do Sul haviam sido registrados na Bacia do Araripe, nordeste do país, sendo datados aproximadamente em 110 milhões de anos. Portanto, a nova espécie é, no momento, o mais antigo representante dos Squamata (grupo de répteis que inclui lagartos e serpentes) na América do Sul. A descoberta também é importante, porque o registro fóssil de lagartos nos continentes do Hemisfério Sul, que até o Cretáceo formavam o supercontinente Gondwana, é pouco conhecido. Isso contrasta com a grande quantidade de fósseis já descobertos em países do Hemisfério Norte, onde a pesquisa paleontológica ocorre em ritmo mais acelerado.

O pesquisador brasileiro Tiago Simões, da Universidade de Harvard e um dos autores do estudo, vem criando, ao longo de anos de trabalho, uma grande base de dados com informações sobre a anatomia do esqueleto de lagartos e serpentes, tanto fósseis, quanto atuais. A isso, ele somou dados de sequenciamento de DNA das espécies atuais.

A análise dessa base de dados forneceu uma estimativa das relações de parentesco entre as espécies estudadas, dando pistas para entender como a diversidade do grupo em questão evoluiu ao longo do tempo.

Os resultados mostraram que a nova espécie pertence à família Paramacellodidae, um grupo que se originou no período Jurássico e se extinguiu durante o Cretáceo. É também a primeira vez que essa família é registrada na América do Sul. Os Paramacellodidae são parentes próximos de um grande grupo atual de lagartos, os scincídeos (família Scincidae), com mais de 1500 espécies e bastante variável em termos de hábitos alimentares e reprodutivos.

Hipótese filogenética para lagartos e serpentes resultante desse estudo

Existem hoje aproximadamente 11.000 espécies conhecidas de répteis, incluindo os Squamata (lagartos e serpentes), crocodilos e tartarugas. Dessas, 97% representam lagartos e serpentes, sendo mais de 2000 espécies só na América do Sul. No Brasil, o último levantamento publicado (Costa e Bérnils, 2017) mostra pelo menos 750 espécies de Squamata, sendo 276 lagartos, 405 serpentes e 72 anfisbenas (também chamadas de cobras-cegas, são parentes próximas dos lagartos). A taxa de endemismo para as espécies de lagartos no Brasil é estimada em 54%.

Quando se fala em registro fóssil, o panorama é um pouco diferente. Primeiramente, ainda há poucas espécies de Squamata no Cretáceo do Brasil – são seis (agora sete!) lagartos e uma sepente. Além disso, os grupos aos quais essas espécies pertencem eram largamente distribuídos nos diversos continentes naquele período, ou seja, eram mais cosmopolitas. Isso contrasta com o alto nível de endemismo nos dias atuais.

O momento desse endemismo ainda é incerto, mas provavelmente ficou mais evidente após o Cretáceo, isto é, durante a Era Cenozoica. Já está bem documentada na literatura científica a grande diversificação dos mamíferos na América do Sul nesse intervalo de tempo, com a ocorrência de grupos nativos amplamente distribuídos ao longo do território.

O endemismo está ligado ao isolamento geográfico das espécies, portanto essa diferença entre uma fauna mais cosmopolita para uma mais endêmica está possivelmente ligada à separação das massas continentais, quando o planeta adquire uma configuração geográfica mais parecida com a atual.

Distribuição de lagartos e serpentes fósseis na América do Sul

Os trabalhos do LPM sobre os fósseis da Bacia Sanfranciscana continuam. Uma grande quantidade de fósseis coletados nos últimos anos, no norte de Minas, segue em estudo. Novidades interessantes serão divulgadas em breve, incluindo pesquisas sobre a relação entre a evolução da biodiversidade onde hoje é a região central do Brasil e os grandes eventos geológicos do período Cretáceo, como a separação da África e América do Sul e a formação do Oceano Atlântico.

Jonathas Bittencourt et al. 2015. O registro fóssil das coberturas sedimentares do Cráton do São Francisco em Minas Gerais. Geonomos 23: 39–62.

Léo Fragoso et al. 2019. Shark (Chondrichthyes) microremains from the Lower Cretaceous Quiricó Formation, Sanfranciscana Basin, Southeast Brazil. Historical Biology, DOI: 10.1080/08912963.2019.1692830.

Joyce Carvalho & Rodrigo Santucci. 2018. New dinosaur remains from the Quiricó Formation, Sanfranciscana Basin (Lower Cretaceous), Southwestern Brazil. Cretaceous Research 85: 20–27.

Amanda Leite et al. 2018. Taxonomy of limnic Ostracoda (Crustacea) from the Quiricó Formation, Lower Cretaceous, São Francisco basin, Minas Gerais State, Southeast Brazil. Journal of Paleontology 92: 661–68.

Henrique C. Costa & Renato S. Bérnils. 2018. Répteis do Brasil e suas Unidades Federativas: Lista de espécies. Herpetologia Brasileira 7(1): 11-57.

Peter Uetz. et al. (eds). 2019. The Reptile Database. Acesso em 20 de março de 2020.

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